“O MECANISMO”

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A 22 de Dezembro de 2010, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução 1966 - S/RES/1966 (2010)- através da qual decidiu criar aquilo a que chamou de “O Mecanismo”.
Trata-se, em termos genéricos, de um novo Tribunal Penal Internacional que visa lidar com as questões residuais que não conseguiram ainda ser investigadas e julgadas pelos Tribunais Penais Internacionais (ad hoc) para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda.
De facto, mais de 16 anos volvidos sobre a criação daqueles tribunais ad hoc, estão longe de estar concluídas a investigação, julgamento e punição de todos os responsáveis por crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes cometidos em violação do direito internacional humanitário naqueles territórios.
Na ausência de julgamentos penais internacionais posteriores a Nuremberga ditada pelo calculismo vivido durante a Guerra Fria, os tribunais penais ad hoc para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda foram criadores de uma jurisprudência essencial no âmbito da justiça penal internacional, que permitiu esclarecer e densificar o conteúdo dos tipos legais de crimes sob a sua alçada e acelerar o processo criador de uma jurisdição penal internacional permanente, com a criação do Tribunal Penal Internacional, em Haia.
Processos como o caso Prosecutor vs. Akayesu ou o Prosecutor vs. Tadic são hoje marcos incontornáveis da jurisprudência penal internacional, estudados e citados na maioria da doutrina mundial.
Os esforços desenvolvidos por aqueles dois tribunais ad hoc foram enormes para conseguir a investigação e julgamento dos maiores criminosos de guerra.
O Conselho de Segurança das Nações Unidas, através das suas resoluções 1503 (2003) e 1534 (2004), havia já instado aqueles dois tribunais para que fizessem todos os possíveis por concluírem os trabalhos de investigação até ao final de 2004, concluírem os julgamentos em primeira instância até ao final de 2008 e completarem o seu trabalho no ano de 2010.
No entanto, 2010 está a chegar ao fim e esse trabalho não foi concluído.
O que falhou?
Da leitura do preâmbulo da resolução 1955 (2010) depreende-se que o número insuficiente de juízes e a falta de pessoal experiente nessa área contribuiu para o atraso na conclusão dos trabalhos dos tribunais.
Problemas na localização, detenção e transferência de criminosos dificultaram também a celeridade das investigações e julgamentos.
A falta de cooperação e assistência de alguns Estados com os tribunais ad hoc parece, assim, ter sido também um problema.
Nem toda a comunidade internacional parece ter estado interessada no julgamento e punição efectiva de criminosos de guerra.
Deste modo, a resolução agora aprovada pelo Conselho de Segurança estende o prazo limite de funcionamento dos tribunais ad hoc até 31 de Dezembro de 2014, altura em que deverão ser transferidas para o “International Residual Mechanism for Criminal Tribunals” (“O Mecanismo”) os processos pendentes.
A necessidade da criação deste “Mecanismo” resulta da ausência de jurisdição do Tribunal Penal Internacional sobre esses crimes, porquanto o mesmo apenas pode julgar crimes cometidos após a sua entrada em vigor e os crimes em questão terem sido todos praticados em momento anterior a essa data.
“O Mecanismo” – que terá duas secções (uma para o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia e outro para o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda) - terá jurisdição sobre todos os crimes que eram da competência dos tribunais ad hoc.
Contudo, ele terá também competência para julgar todas as pessoas que, conscientemente, tenham obstado à administração da justiça por aqueles tribunais ou pelo “Mecanismo”, bem como as testemunhas que, perante estes, prestem falso testemunho.
Parece, pois, que todos aqueles que têm cooperado com os criminosos de guerra do território da ex-Jugoslávia e do Ruanda têm razões para se começarem a preocupar.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado parcialmente na edição de 29 de Dezembro de 2010 do jornal "PUBLICO" ("Cartas à Directora"), pag. 30

Reconhecimento do genocídio arménio: entre a legalidade e a geopolítica.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A 4 de Março de 2010, a Comissão de Negócios Estrangeiros da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou uma resolução que qualificou como genocídio o extermínio de um milhão e meio de arménios durante a I Guerra Mundial.
Na altura, Hillary Clinton apressou-se a afirmar que o Governo Norte-Americano se opunha àquela resolução e tudo faria para impedir a sua aprovação no Senado.
A verdade é que, na passada terça-feira, a sessão plenária do Congresso Norte Americano deixou de fora da sua agenda a Resolução sobre o Reconhecimento do Genocídio Arménio (HR 252).
O que pode levar os Estados Unidos a negar-se a reconhecer, passados quase 100 anos, aquele que é considerado o primeiro genocídio do sec. XX?
Em 24 de Abril de 1915, uma ordem do Ministério do Interior do Governo dos chamados jovens turcos, aproveitando o contexto da I Guerra Mundial, deu inicio a uma política de extermínio da população arménia, por motivos nacionais e religiosos.
Para além de prisões e execuções sumárias, o extermínio dos arménios foi desenvolvido através da sujeição intencional destes a um conjunto de medidas e condições de vida desumanas destinadas a provocar a sua eliminação física, nomeadamente a sujeição a um plano de deportação em que a população arménia foi dizimada durante o percurso pela doença (tifo), pelo esgotamento e pelas privações, nomeadamente pelo racionamento de alimentos e água. Os sobreviventes que conseguiam chegar ao fim do percurso foram depois distribuídos por campos de concentração, onde, já doentes, sem cuidados médicos nem provisões, acabaram por morrer “naturalmente”.
A gravidade desses massacres foi tão grande que, a 28 de Maio de 1915 os governos da França, Grã-Bretanha e Rússia fizeram uma declaração conjunta onde se referiam aos mesmos como crimes contra a humanidade e a civilização.
Finda a guerra, foi assinado o tratado de Paz entre a Turquia e os Aliados – Tratado de Sèvres – que previa o julgamento dos responsáveis pelo massacre dos arménios.
No entanto, aquele tratado nunca foi ratificado pela Turquia, sendo posteriormente substituído pelo Tratado de Laussane (1923), que amnistiaria aqueles crimes.
Desse modo, os responsáveis turcos pelos massacres dos arménios nunca cumpriram qualquer pena pelo cometimento daqueles crimes.
O genocídio só foi reconhecido como um crime de direito internacional em 11 de Dezembro de 1946, através de uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas.
E só em 9 de Dezembro de 1948 foi aprovada a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.
À luz dessa convenção, e entre outros actos, é considerado genocídio a pratica de homicídios ou a submissão deliberada de um grupo a condições de existência que acarretem a sua destruição física quando tal for executado com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Pelo que é evidente a qualificação como genocídio de massacres como os praticados pelos Turcos contra os arménios durante a I Guerra Mundial.
NO entanto, apesar de a Turquia ter assinado essa convenção, ela nunca reconheceu o genocídio arménio.
O argumento central é o de que inexistindo o crime de genocídio à data em que foram praticados os factos, não podem ser consideradas como tal as condutas criminosas perpetuadas pelo governo dos jovens turcos, por manifesta violação do princípio nulum crimen sine lege.
Certo é que, em Outubro de 1963, a Comissão dos Direitos do Homem da ONU reconheceu o genocídio arménio como o “primeiro genocídio do século”.
Em 18 de Junho de 1987 foi a vez de o Parlamento Europeu o reconhecer.
Países como a França ou o Canadá reconheceram já o genocídio arménio.
Era bom que o Congresso dos Estados Unidos da América se juntasse finalmente a esse reconhecimento mundial.
No entanto, o governo turco advertiu o Presidente Barack Obama de que a aprovação de uma resolução no Congresso que reconheça o massacre dos arménios na I Guerra Mundial como “genocídio” poderá prejudicar seriamente as relações entre a Turquia e os Estados Unidos.
O Congresso Norte Americano acaba de deixar de fora da sua agenda a discussão e aprovação daquela resolução.
Os interesses geoestratégicos dos Estados Unidos da América sobrepõem-se, assim, mais uma vez, ao reconhecimento dos direitos humanos.
E Barack Obama tem cada vez mais dificuldade em justificar o Prémio Nobel que lhe foi atribuído a crédito.



Miguel Salgueiro Meira

A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS DO HOMEM

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010


Há 62 anos a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou e proclamou a Resolução 217A (III), da qual constava a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O flagelo vivido durante a guerra em muito contribuiu para a consciencialização dos povos do Mundo acerca da necessidade de reconhecer ao ser Humano direitos inalienáveis e garantir a sua protecção jurídica universal.
Como se pode ler no seu preâmbulo, o desconhecimento e desprezo dos direitos humanos conduziram a actos de barbárie que revoltaram a consciência da Humanidade.
Por isso mesmo, e com o objectivo de garantir a liberdade, a justiça e a paz no Mundo – como se haviam já comprometido aquando da assinatura da Carta de São Francisco – as Nações Unidas proclamaram a 10 de Dezembro de 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhecendo a todo e qualquer ser humano a sua igual dignidade e a garantia de um leque de direitos e liberdades fundamentais, fosse qual fosse a sua nacionalidade, raça, cor, sexo, língua, religião ou opinião política.
Essa declaração – que carecia de valor jurídico vinculativo – constituiu um momento de viragem no reconhecimento e garantia dos direitos humanos.
De facto, os direitos e liberdades fundamentais tinham começado por ser reconhecidos como meros postulados filosóficos ainda no advento do Iluminismo, com os contributos de Locke, Hobbes e Rosseau.
O reconhecimento e consagração escrita desses direitos e liberdades fundamentais apenas ganhariam corpo com a era do constitucionalismo, passando a constar das primeiras cartas de direitos e constituições que foram surgindo em diversos Estados a partir do sec. XVIII um pouco por todo o Mundo, fossem eles a Declaração dos Direitos da Virginia (1776) ou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), em França.
Essas constituições tiveram o mérito de reduzir a letra de lei o reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais aos seus cidadãos, direitos, esses, que eram, essencialmente, aquilo que hoje entendemos por direitos civis e políticos.
Contudo, o horror e carnificina das duas grandes Guerras Mundiais cedo fez perceber que uma protecção meramente estadual daqueles direitos não era suficiente para garantir que todo e qualquer ser humano – que não fosse cidadão de um Estado dotado de uma constituição onde tais direito fossem consagrados – visse protegida a sua dignidade humana e visse garantidos os seus direitos fundamentais.
O grande significado da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) não foi, por isso, o reconhecimento ex novo de um conjunto de direitos fundamentais inerentes ao ser humano.
O seu grande contributo foi o reconhecimento de que tais direitos eram universais e deveriam ser reconhecidos a todos os povos do Mundo, fosse qual fosse a sua nacionalidade ou modo de organização do seu estado (artº. 2º da DUDH).
Contudo, o carácter universal desses direitos não foi consensual logo em 1948.
Dos 56 Estados que na altura se faziam representar nas Nações Unidas, 8 abstiveram-se: URSS, Polónia, Ucrânia, Bielorrússia, Checoslováquia, Jugoslávia, África do Sul e Arábia Saudita.
Durante as seis décadas de existência, a DUDH resistiu a diversas tentativas da sua relativização.
Escudando-se no argumento da diferença cultural, muitos foram os Estados que negaram a universalidade dos direitos contidos na DUDH.
Só os estados árabes e muçulmanos contam já com diversas declarações universais: a Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem (1981), a Declaração dos Direitos Humanos do Islão (1990 - adoptada pela Organização da Conferência Islâmica) e a Carta Árabe dos Direitos Humanos (1994).
No entanto, ainda há mulheres que continuam a ser condenadas ao apedrejamento em países árabes.
E ainda há presos que continuam a ser torturados em solo norte-americano.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem – cujos preceitos são hoje reconhecidos como parte do costume internacional (ius cogens) – é, sem dúvida alguma, um marco e instrumento essencial de defesa dos direitos humanos.
Mas, o seu objectivo principal está longe de estar plenamente alcançado: a garantia dos direitos e liberdades fundamentais a todo e qualquer cidadão do Mundo.
O combate pela universalidade dos direitos humanos é, por isso, um logo caminho ainda a percorrer.


Miguel Salgueiro Meira

SÁ CARNEIRO: A MISTIFICAÇÃO DE UM MITO.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010


Ao contrário dos políticos que são escrutinados no final do seu mandato, a morte prematura de um líder carismático elege o falecido, sem escrutínio, ao estatuto de ícone.
Foi assim com Kennedy e Che Guevara. Assim foi, também, com Sá Carneiro.
Tendo acabado de conquistar uma maioria absoluta para a AD, Sá Carneiro estava em pleno estado de graça quando, a 4 de Dezembro, o avião onde seguia caiu em Camarate.
O projecto que liderava preconizava para o país uma via social-democrata, por oposição a um projecto socialista que, na altura, era ainda um caminho possível.
Eram lutas por projectos e por valores.
A sua morte prematura não lhe deu tempo de governar nem deu tempo aos portugueses de avaliar a sua real capacidade governativa.
Ao contrário de Cavaco Silva, que abandonou a liderança do PSD em 1995 para não sofrer a humilhação da derrota eleitoral para Guterres (há quem procure fazer esquecer isto), a morte de Sá Carneiro poupou-o ao sufrágio dos portugueses, alcandorando-o precocemente a um estatuto de ícone.
Esse seu estatuto não passa, por isso mesmo, de mais um mito da sociedade portuguesa.
Tal como acontece com todos os ícones, as tentativas de aproveitamento político da sua imagem são frequentes, sendo, normalmente, levadas a cabo por quem não tem prestígio e categoria própria para alcançar aquele estatuto.
As sucessivas tentativas de reabrir o processo de Camarate nada mais são do que a tentativa de fazer render um mito.
Há, no entanto, algo em Sá Carneiro e nos políticos da sua geração que deve ser tido como um exemplo para os portugueses, sobretudo para os jovens.
É que, à semelhança de Álvaro Cunhal, Mário Soares ou Freitas do Amaral (políticos da época), Sá Carneiro era um homem que se tinha distinguido na sua vida civil e profissional e que, só depois (e por isso mesmo), foi chamado à política.
Hoje em dia o que se passa é precisamente o inverso: são nomeados para cargos políticos pessoas sem qualquer experiência profissional ou currículo que justifique tal nomeação (às vezes mesmo sem uma licenciatura), aproveitando-se depois do seu currículo político e do leque de relações que tal lhe proporciona para arranjarem um bom emprego.
Os resultados estão à vista de todos.
Valha-nos o exemplo de Sá Carneiro e dos políticos da sua geração, homens que, partilhando valores diferentes, tinham todos valor e lutaram por projectos e ideias.
É esse o exemplo que deve prevalecer de políticos como Sá Carneiro e não qualquer outra mistificação.

Miguel Salgueiro Meira

Publicada parcialmente na edição de 4 de Dezembro de 2010 do semanário "EXPRESSO", in "Carta da semana"