ISRAEL, A TURQUIA E O OUTRO LADO DO “PALMER COMISSION REPORT”.

sábado, 17 de setembro de 2011




A conclusão do relatório da Comissão Palmer, nomeada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas para averiguar as circunstâncias e consequências do incidente da frota humanitária de 31 de Maio de 2010 que envolveu as forças armadas israelitas (IDF) e activistas humanitários, tem provocado um azedar de relações entre Israel e a Turquia.
No “Palmer Comission Report” – como ficou conhecido - foram analisados detalhadamente o bloqueio naval levado a cabo por Israel, as acções da frota humanitária, os esforços diplomáticos desencadeados pelo incidente, a operação de abordagem aos navios por parte de Israel e o uso da força na abordagem ao navio “Mavi Marmara”.
Algumas das conclusões do relatório têm sido propaladas, nomeadamente as recomendações da Comissão Palmer para que Israel efectuasse um pedido de desculpa pelo incidente.
Israel ainda não o fez - não lhe teria ficado mal se o tivesse feito.
A Turquia aproveitou essa falha diplomática, cavalgando a crista da onda do lobbying crescente para denegrir internacionalmente a imagem de Israel, numa altura em que está iminente um pedido de reconhecimento do Estado Palestiniano.
No entanto, a Turquia parece esquecer-se que o “Palmer Comission Report” também lhe imputa falhas no caso do incidente da frota humanitária.
Reconhecendo que Israel enfrenta desde 2001 uma ameaça real à sua segurança e à da sua população civil por parte de grupos militantes em Gaza, a Comissão Palmer é clara ao referir que tem sido o Hamas - como autoridade administrativa e política com controlo efectivo sobre Gaza - quem tem disparado rockets, mísseis e morteiros contra Israel ou permitido que outros o façam, com o propósito de causar danos à população de Israel.
Nessa medida, a comissão de inquérito considerou que o bloqueio naval, para além de válido à luz do direito internacional, é uma medida proporcional do estado israelita para defender o seu território e população (impedindo que armamento, munições e abastecimento militar cheguem a Gaza e ao Hamas), rejeitando o argumento Turco de que o objectivo daquele bloqueio era o de provocar a fome ou punir a população de Gaza.
Por outro lado, a Comissão Palmer, questionou a verdadeira natureza e objectivos dos organizadores da frota humanitária: por um lado, houve a suspeita de que a proprietária de dois dos navios que integravam aquela frota (entre os quais o “Mavi Marmara”) era uma organização não-governamental turca suspeita de apoiar o Hamas. Por outro lado, foi posta em causa a qualidade da ajuda humanitária a bordo das embarcações (limitada a alguma comida e brinquedos transportados na bagagem pessoal dos passageiros). Pelo que, entendendo ser desnecessária uma frota de seis navios para transportar tão reduzida ajuda humanitária, a comissão de inquérito concluiu que a mesma tinha apenas intenções propagandísticas.
De acordo com as conclusões do “Palmer Comission Report”, o Governo Turco, podendo tê-lo feito, não alertou devidamente os participantes na frota humanitária dos riscos reais dessa participação, nomeadamente da possível utilização de força por parte de Israel.
A comissão de inquérito considerou também que muito mais poderia ter sido feito em termos diplomáticos por Israel e pela Turquia para evitar o incidente.
Já no que toca à abordagem do navio “Mavi Marmara” pelas forças armadas israelitas (IDF) a comissão de inquérito reconheceu que ela contou com uma resistência violenta dos passageiros, o que levou a que a mesma não pudesse ser feita por via marítima mas sim através de comandos transportados de helicóptero, que desceram através de cordas para o navio - uma imagem que correu Mundo.
No entanto, e de acordo com o relatório, alguns dos passageiros do “Mavi Marmara” tinham-se preparado antecipadamente para resistir de forma violenta a qualquer tentativa de abordagem, tendo cortado as barras laterais de ferro do barco para serem usadas como arma, bem como correntes e facas, isto para além de estarem preparados com coletes à prova de bala e mascaras de gás.
A Comissão Palmer concluiu, por isso, que, perante a resistência violenta dos passageiros da frota humanitária, os militares envolvidos na operação tiveram que tomar medidas para a sua protecção e da dos demais soldados.
Apesar disso, a comissão considerou excessivas e inaceitáveis as mortes e danos físicos provocados pelo IDF.
A leitura do “Palmer Comission Report” deixa, assim, transparecer que o real objectivo dos organizadores da frota humanitária não foi o de levar ajuda humanitária, mas sim o de criar um incidente que chamasse a atenção da comunidade internacional contra o bloqueio naval israelita, pondo, assim, em causa a imagem internacional de Israel.
Tendo em conta o modo como provocaram as forças armadas israelitas e a preparação que levavam para lhes resistir, questionamo-nos se os organizadores da frota humanitária não anteviram as consequências e se as mesmas não foram desejadas, com objectivos propagandísticos anti-israelitas.
Mas o relatório da Comissão Palmer deixa ainda no ar suspeições não esclarecidas sobre uma postura da Turquia para com os organizadores da frota humanitária e a relação destes com o Hamas.
De facto, o “Palmer Comission Report” refere como controvertida a presença de 40 activistas do navio “Mavi Marmara” que integraram aquilo que foi apelidado de hardcore group, com controlo efectivo sobre a embarcação durante a viagem e que não foi sujeito a qualquer inspecção de segurança no porto Turco de Istambul.
Se a isto associarmos o facto de que o Hamas tinha preparada uma recepção para os participantes da frota humanitária quando estes chegassem a Gaza, bem como o recente anúncio público do Primeiro-Ministro Turco Recep Tayyip Erdogan de que estava a equacionar uma visita a Gaza, talvez compreendamos melhor o contexto da recusa israelita em pedir desculpas à Turquia pelo incidente e a propaganda activa que esta tem feito com a publicitação em torno das suas decisões de cortar relações diplomáticas com Israel, expulsando o seu embaixador.
Não há Paz à vista no Médio Oriente.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado parcialmente na edição de 17 de Setembro de 2011 do jornal "EXPRESSO", pag. 34

A MULHER COMO SUJEITO ACTIVO DA BARBÁRIE.



A violência e carnificina das guerras andaram sempre associadas ao género masculino dos combatentes, figurando a mulher quase sempre como vítima civil dos conflitos armados, sujeita às piores provações físicas e psicológicas.
Com o passar dos séculos, a mulher foi vendo reconhecidos os seus direitos civis e políticos, e foi naturalmente ocupando lugares nos governos e nas forças armadas das Nações.
Mas nem sempre o papel da mulher nos conflitos armados, como combatente ou governante, conduziu a uma maior humanização da guerra.
A recente condenação pelo Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (ICTR) de Pauline Nyiramasuhuko à pena de prisão perpétua por crimes de genocídio, crime contra a humanidade e crimes de guerra é disso um bom exemplo.
No ano em que se completam 65 anos sobre a data em que a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o genocídio um crime de direito internacional , Pauline Nyiramasuhuko tornou-se a primeira mulher a ser condenada por tal crime.
Entre 6 de Abril de 1994 e 14 de Julho de 1994, num contexto de um conflito armado entre o Exército leal ao Governo e a Frente Rebelde Patriótica (RPF), o Ruanda viveu um genocídio de características grotescas.
A elite governante de etnia hutu lançou-se num plano concertado para a destruição da etnia tutsi, através da eliminação física dos seus membros, tendo em apenas 100 dias sido assassinadas cerca de 800 000 pessoas, numa média de 8 000 pessoas por dia.
As imagens e relatos desse período são aterradoras, com os cidadãos de etnia tutsi a serem violentados, torturados e mortos a golpes de katana, sendo as mulheres tutsi violadas e esventradas antes de serem mortas e as crianças tutsi decepadas em frente aos pais.
Tudo isto se passou com uma força de peacekeeping das Nações Unidas no terreno (UNAMIR) a qual, devido ao mandato limitado que possuía, não pôde intervir para evitar os massacres, num dos episódios mais vergonhosos da história Nações Unidas.
À data do genocídio, Pauline Nyiramasuhuko era ministra no governo interino do Ruanda.
Entre 9 de Abril de 1994 e 14 de Julho de 1994, Pauline Nyiramasuhuko, enquanto Ministra, participou das reuniões do Governo onde foram emitidas directivas e decisões para encorajar a população ruandesa de etnia hutu a atacar e matar os cidadãos de etnia tutsi, nomeadamente destituindo todos aqueles que obstaculizavam o assassinato desses cidadãos, incentivando a população a montar barricadas nas ruas para aí eliminar a população tutsi e tomando outras decisões que permitiram os massacres na comuna de Butare.
Face a todo esse factualismo que resultou provado, o ICTR considerou demonstrado que Pauline Nyaramasuhuko tinha acordado com os demais membros do Governo Interino do Ruanda assassinar os cidadãos de etnia tutsi na Perfeitura de Butare, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, esse grupo étnico. Por isso mesmo, considerou Nyaramasuhuko culpada de conspiração para o cometimento de genocídio .
Para além disso, o ICTR deu como provado que em Maio e Julho de 1994 Nyaramasuhuko ordenou a membros da milicia Interahamwe (uma das principais responsáveis pela execução dos massacres) que assassinassem cidadãos tutsi e violassem as mulheres dessa etnia.
Contudo, nessa parte, o tribunal fez uma crítica contundente à acusação deduzida pelo Procurador: alegando ter provas suficientes para poder considerar que as violações de mulheres tutsis constituíam uma forma de execução do genocídio, o ICTR não pode condenar Nyiramasuhuko pelo crime de genocídio nessa base, uma vez que a acusação que lhe foi notificada não continha uma imputação suficiente de tais factos, pelo que, a ser proferida tal condenação, a mesma atentaria contra as garantias e direitos de defesa da arguida.
Nessa medida, e relativamente às ordens dadas para a violação de mulheres tutsi, Pauline Nyaramasuhuko foi condenada apenas por crimes contra a humanidade e crimes de guerra por atentado contra a dignidade pessoal.
Neste processo – que o tribunal considerou “complexo e prolongado” - foram ouvidas 189 testemunhas e analisadas cerca de 13.000 páginas de documentos.
Esse arrastamento do processo não impediu, no entanto, o ICTR de voltar a fazer história: depois de ter sido o primeiro tribunal penal internacional a efectuar um julgamento pela prática de um crime de genocídio (caso Prosecutor vs. Akayesu) ele tornou-se no primeiro tribunal a condenar uma mulher por esse crime.


Miguel Salgueiro Meira

Publicado no "Boletim da Ordem dos Advogados", nº 79/80, Junho/Julho de 2011, pag. 46.