Baltazar Garzón e os crimes contra a humanidade.

terça-feira, 27 de abril de 2010


Num Mundo onde as relações internacionais se basearam sempre nos interesses obscuros dos Estados e onde a hipocrisia imperou e impera, o julgamento internacional de indivíduos por crimes de guerra e crimes contra a humanidade constituiu sempre uma excepção.
A vontade de a comunidade internacional submeter a julgamento os crimes mais graves cometidos durante conflitos armados internacionais começou a afirmar-se no decurso da I Guerra Mundial.
Mas foi necessário esperar pelo fim da II Guerra Mundial para que criminosos de guerra fossem efectivamente julgados e punidos no Tribunal Militar Internacional de Nuremberga ou nos tribunais alemães, ao abrigo da Lei do Conselho de Controlo nº 10.
Tratou-se, aí, de julgamentos de vencidos pelos vencedores.
Com raríssimas excepções (das quais se destaca o julgamento de Eichman em Israel), o julgamento por crimes contra a humanidade só ressurgiria nos anos 90 do século passado, após as atrocidades cometidas na ex-Jugoslávia e no Ruanda.
Mais complicado foi, no entanto, o julgamento de crimes contra a humanidade cometidos em conflitos armados não internacionais.
Escudando-se no princípio da não ingerência nos seus assuntos internos, chefes de estado e de governo dos diversos países sempre tiveram grande resistência em admitir a possibilidade de os crimes contra a humanidade cometidos dentro do seu território poderem ser julgados por outro país.
Foi com dificuldade que alguns países começaram progressivamente a aceitar a possibilidade de julgar no seu território indivíduos nacionais de outros Estados por crimes cometidos fora do seu território.
A “doutrina da jurisdição universal” – como ficou conhecida – constitui uma excepção ao princípio da territorialidade, reconhecendo uma jurisdição extraterritorial no caso de crimes que, atenta a sua gravidade, são entendidos como crimes cometidos contra toda a comunidade internacional e contra a humanidade.
O surgimento desta doutrina representou um avanço importante para combater a impunidade de criminosos que, de outro modo, dormiriam sossegados com as mãos sujas de sangue, albergados pelo governo do seu próprio país.
O Estado que mais se destacou nesta luta contra a impunidade foi, precisamente, a Espanha, graças a Baltazar Garzón.
Baltazar Garzón ficou conhecido ao emitir uma ordem de prisão contra Augusto Pinochet pela morte e tortura de cidadãos espanhóis durante os anos da ditadura chilena.(...)
Ironicamente,foi precisamente quando mexeu nas feridas mal curadas da sociedade espanhola, procurando julgar crimes contra a humanidade dentro do seu próprio País, nomeadamente o desaparecimento de milhares de vítimas durante o franquismo, que Garzón viu ameaçada a sua função que desde sempre veio exercendo: a de fazer Justiça.
Três organizações de extrema-direita acusam agora Garzón de ter ultrapassado as suas competências, ao lançar um inquérito sobre as vítimas da ditadura.(...)
De acordo com o direito internacional penal actual, os crimes contra a humanidade são imprescritíveis.
É inadmissível a tentativa de condicionar a independência de Baltazar Garzón, procurando deter o exercício legítimo da sua função judicial, movendo-lhe processos no intuito de o travar e de o intimidar.
Quer se queira quer não, Baltazar Gárzon é um símbolo de Espanha e da Justiça Internacional.
Atenta a sua coragem, já demonstrada ao longo de uma longa carreira, não é de crer que Garzón se deixe intimidar com os processos que lhe foram movidos pelos franquistas.
E isso será uma garantia para o Mundo de que os criminosos de guerra terão a sua vida facilitada.
O que se espera é que a Justiça Espanhola não se deixe intimidar mais do que Gárzon.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado na edição de 27 de Abril de 2010 do jornal "PÚBLICO", pag. 38