O ÁLVARO DEIXOU DE SORRIR.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011




Nascido beirão no Portugal profundo, e tendo cursado economia na mais distinta universidade do País, Álvaro Santos Pereira rumou para a América do Norte onde, entre os Estados Unidos e o Canadá, viveu anos de docência universitária leccionando aulas de Desenvolvimento Económico e Política Económica e doutorando-se na Simon Fraser University.
Durante a sua teorética vida académica, Álvaro Santos Pereira escreveu dois livros discorrendo sobre o que chamou mitos da economia portuguesa e sobre os desafios com que a mesma se debatia, nomeadamente os problemas da sua produtividade, dos salários baixos, dos imigrantes, do euro, da Europa e da crise que o país atravessava.
Passando a ser voz constante na imprensa económica nacional, o economista começou a ser conhecido.
Ganhas as eleições, Passos Coelho viu em Álvaro Santos Pereira alguém a quem confiar os destinos económicos na nação e convidou-o para Ministro da Economia.
Sem que alguma vez tivesse gerido o que quer que fosse - ocupado que sempre esteve na docência universitária -, Álvaro Santos Pereira viu subitamente cair-lhe nas mãos a responsabilidade da gestão económica da nação.
De académico e desmistificador de mitos, o actual Ministro da Economia foi incumbido de salvar a economia de um país em crise profunda a quem o FMI tinha acabado de estender a mão para o salvar da bancarrota.
Feito o convite, um animado e muito sorridente Álvaro dos Santos Pereira era visto periodicamente em entrevistas e deslocações públicas.
Mas em pouco mais de cem dias de governo o Ministro da Economia deu de caras com o país real, com as empresas a atravessar dificuldades imensas e as insolvências colectivas e individuais a sucederem-se diariamente a um ritmo avassalador.
A acrescer a isso, Álvaro Santos Pereira viu o Ministro das Finanças destruir-lhe todas e quaisquer hipóteses de reabilitar a economia nacional.
O agravamento da carga fiscal a níveis nunca antes vistos e a redução do salário anual dos trabalhadores (com os cortes dos subsídios Férias e de Natal), puseram em causa o poder de compra dos portugueses, o que terá reflexos negativos imediatos nos milhares de comerciantes, que deixarão de vender.
O agravamento para 23% da taxa de IVA na restauração, refrigerantes e congelados onerou em demasia a actividade do turismo e restauração que vive já de si aflita à espera de obter nos meses de Verão o suficiente para se manterem “vivos”durante o resto do ano.
A impossibilidade de deduzir fiscalmente as despesas com aquisição de habitação e com os novos arrendamentos consubstancia um golpe de morte no sector da construção civil que, já de si, estava moribundo.
Com tais ataques da máquina fiscal, o país prepara-se para a pior recessão desde 1975, com uma queda do PIB prevista de 2,8% e uma taxa de desemprego de 13,4%.
Perante este cenário, o Ministro da Economia pouco mais pode fazer do que mandar mensagens de alento, dizendo-nos que há vida para além da austeridade.
Mas esta crise não é um mito. As famílias portuguesas que o digam.
O Ministro da Economia também já o percebeu.
Talvez por isso, o Álvaro deixou de sorrir.


Miguel Salgueiro Meira

in edição de 20 de Outubro de 2011 do jornal "Público", pag. 38.

ISRAEL, A TURQUIA E O OUTRO LADO DO “PALMER COMISSION REPORT”.

sábado, 17 de setembro de 2011




A conclusão do relatório da Comissão Palmer, nomeada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas para averiguar as circunstâncias e consequências do incidente da frota humanitária de 31 de Maio de 2010 que envolveu as forças armadas israelitas (IDF) e activistas humanitários, tem provocado um azedar de relações entre Israel e a Turquia.
No “Palmer Comission Report” – como ficou conhecido - foram analisados detalhadamente o bloqueio naval levado a cabo por Israel, as acções da frota humanitária, os esforços diplomáticos desencadeados pelo incidente, a operação de abordagem aos navios por parte de Israel e o uso da força na abordagem ao navio “Mavi Marmara”.
Algumas das conclusões do relatório têm sido propaladas, nomeadamente as recomendações da Comissão Palmer para que Israel efectuasse um pedido de desculpa pelo incidente.
Israel ainda não o fez - não lhe teria ficado mal se o tivesse feito.
A Turquia aproveitou essa falha diplomática, cavalgando a crista da onda do lobbying crescente para denegrir internacionalmente a imagem de Israel, numa altura em que está iminente um pedido de reconhecimento do Estado Palestiniano.
No entanto, a Turquia parece esquecer-se que o “Palmer Comission Report” também lhe imputa falhas no caso do incidente da frota humanitária.
Reconhecendo que Israel enfrenta desde 2001 uma ameaça real à sua segurança e à da sua população civil por parte de grupos militantes em Gaza, a Comissão Palmer é clara ao referir que tem sido o Hamas - como autoridade administrativa e política com controlo efectivo sobre Gaza - quem tem disparado rockets, mísseis e morteiros contra Israel ou permitido que outros o façam, com o propósito de causar danos à população de Israel.
Nessa medida, a comissão de inquérito considerou que o bloqueio naval, para além de válido à luz do direito internacional, é uma medida proporcional do estado israelita para defender o seu território e população (impedindo que armamento, munições e abastecimento militar cheguem a Gaza e ao Hamas), rejeitando o argumento Turco de que o objectivo daquele bloqueio era o de provocar a fome ou punir a população de Gaza.
Por outro lado, a Comissão Palmer, questionou a verdadeira natureza e objectivos dos organizadores da frota humanitária: por um lado, houve a suspeita de que a proprietária de dois dos navios que integravam aquela frota (entre os quais o “Mavi Marmara”) era uma organização não-governamental turca suspeita de apoiar o Hamas. Por outro lado, foi posta em causa a qualidade da ajuda humanitária a bordo das embarcações (limitada a alguma comida e brinquedos transportados na bagagem pessoal dos passageiros). Pelo que, entendendo ser desnecessária uma frota de seis navios para transportar tão reduzida ajuda humanitária, a comissão de inquérito concluiu que a mesma tinha apenas intenções propagandísticas.
De acordo com as conclusões do “Palmer Comission Report”, o Governo Turco, podendo tê-lo feito, não alertou devidamente os participantes na frota humanitária dos riscos reais dessa participação, nomeadamente da possível utilização de força por parte de Israel.
A comissão de inquérito considerou também que muito mais poderia ter sido feito em termos diplomáticos por Israel e pela Turquia para evitar o incidente.
Já no que toca à abordagem do navio “Mavi Marmara” pelas forças armadas israelitas (IDF) a comissão de inquérito reconheceu que ela contou com uma resistência violenta dos passageiros, o que levou a que a mesma não pudesse ser feita por via marítima mas sim através de comandos transportados de helicóptero, que desceram através de cordas para o navio - uma imagem que correu Mundo.
No entanto, e de acordo com o relatório, alguns dos passageiros do “Mavi Marmara” tinham-se preparado antecipadamente para resistir de forma violenta a qualquer tentativa de abordagem, tendo cortado as barras laterais de ferro do barco para serem usadas como arma, bem como correntes e facas, isto para além de estarem preparados com coletes à prova de bala e mascaras de gás.
A Comissão Palmer concluiu, por isso, que, perante a resistência violenta dos passageiros da frota humanitária, os militares envolvidos na operação tiveram que tomar medidas para a sua protecção e da dos demais soldados.
Apesar disso, a comissão considerou excessivas e inaceitáveis as mortes e danos físicos provocados pelo IDF.
A leitura do “Palmer Comission Report” deixa, assim, transparecer que o real objectivo dos organizadores da frota humanitária não foi o de levar ajuda humanitária, mas sim o de criar um incidente que chamasse a atenção da comunidade internacional contra o bloqueio naval israelita, pondo, assim, em causa a imagem internacional de Israel.
Tendo em conta o modo como provocaram as forças armadas israelitas e a preparação que levavam para lhes resistir, questionamo-nos se os organizadores da frota humanitária não anteviram as consequências e se as mesmas não foram desejadas, com objectivos propagandísticos anti-israelitas.
Mas o relatório da Comissão Palmer deixa ainda no ar suspeições não esclarecidas sobre uma postura da Turquia para com os organizadores da frota humanitária e a relação destes com o Hamas.
De facto, o “Palmer Comission Report” refere como controvertida a presença de 40 activistas do navio “Mavi Marmara” que integraram aquilo que foi apelidado de hardcore group, com controlo efectivo sobre a embarcação durante a viagem e que não foi sujeito a qualquer inspecção de segurança no porto Turco de Istambul.
Se a isto associarmos o facto de que o Hamas tinha preparada uma recepção para os participantes da frota humanitária quando estes chegassem a Gaza, bem como o recente anúncio público do Primeiro-Ministro Turco Recep Tayyip Erdogan de que estava a equacionar uma visita a Gaza, talvez compreendamos melhor o contexto da recusa israelita em pedir desculpas à Turquia pelo incidente e a propaganda activa que esta tem feito com a publicitação em torno das suas decisões de cortar relações diplomáticas com Israel, expulsando o seu embaixador.
Não há Paz à vista no Médio Oriente.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado parcialmente na edição de 17 de Setembro de 2011 do jornal "EXPRESSO", pag. 34

A MULHER COMO SUJEITO ACTIVO DA BARBÁRIE.



A violência e carnificina das guerras andaram sempre associadas ao género masculino dos combatentes, figurando a mulher quase sempre como vítima civil dos conflitos armados, sujeita às piores provações físicas e psicológicas.
Com o passar dos séculos, a mulher foi vendo reconhecidos os seus direitos civis e políticos, e foi naturalmente ocupando lugares nos governos e nas forças armadas das Nações.
Mas nem sempre o papel da mulher nos conflitos armados, como combatente ou governante, conduziu a uma maior humanização da guerra.
A recente condenação pelo Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (ICTR) de Pauline Nyiramasuhuko à pena de prisão perpétua por crimes de genocídio, crime contra a humanidade e crimes de guerra é disso um bom exemplo.
No ano em que se completam 65 anos sobre a data em que a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o genocídio um crime de direito internacional , Pauline Nyiramasuhuko tornou-se a primeira mulher a ser condenada por tal crime.
Entre 6 de Abril de 1994 e 14 de Julho de 1994, num contexto de um conflito armado entre o Exército leal ao Governo e a Frente Rebelde Patriótica (RPF), o Ruanda viveu um genocídio de características grotescas.
A elite governante de etnia hutu lançou-se num plano concertado para a destruição da etnia tutsi, através da eliminação física dos seus membros, tendo em apenas 100 dias sido assassinadas cerca de 800 000 pessoas, numa média de 8 000 pessoas por dia.
As imagens e relatos desse período são aterradoras, com os cidadãos de etnia tutsi a serem violentados, torturados e mortos a golpes de katana, sendo as mulheres tutsi violadas e esventradas antes de serem mortas e as crianças tutsi decepadas em frente aos pais.
Tudo isto se passou com uma força de peacekeeping das Nações Unidas no terreno (UNAMIR) a qual, devido ao mandato limitado que possuía, não pôde intervir para evitar os massacres, num dos episódios mais vergonhosos da história Nações Unidas.
À data do genocídio, Pauline Nyiramasuhuko era ministra no governo interino do Ruanda.
Entre 9 de Abril de 1994 e 14 de Julho de 1994, Pauline Nyiramasuhuko, enquanto Ministra, participou das reuniões do Governo onde foram emitidas directivas e decisões para encorajar a população ruandesa de etnia hutu a atacar e matar os cidadãos de etnia tutsi, nomeadamente destituindo todos aqueles que obstaculizavam o assassinato desses cidadãos, incentivando a população a montar barricadas nas ruas para aí eliminar a população tutsi e tomando outras decisões que permitiram os massacres na comuna de Butare.
Face a todo esse factualismo que resultou provado, o ICTR considerou demonstrado que Pauline Nyaramasuhuko tinha acordado com os demais membros do Governo Interino do Ruanda assassinar os cidadãos de etnia tutsi na Perfeitura de Butare, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, esse grupo étnico. Por isso mesmo, considerou Nyaramasuhuko culpada de conspiração para o cometimento de genocídio .
Para além disso, o ICTR deu como provado que em Maio e Julho de 1994 Nyaramasuhuko ordenou a membros da milicia Interahamwe (uma das principais responsáveis pela execução dos massacres) que assassinassem cidadãos tutsi e violassem as mulheres dessa etnia.
Contudo, nessa parte, o tribunal fez uma crítica contundente à acusação deduzida pelo Procurador: alegando ter provas suficientes para poder considerar que as violações de mulheres tutsis constituíam uma forma de execução do genocídio, o ICTR não pode condenar Nyiramasuhuko pelo crime de genocídio nessa base, uma vez que a acusação que lhe foi notificada não continha uma imputação suficiente de tais factos, pelo que, a ser proferida tal condenação, a mesma atentaria contra as garantias e direitos de defesa da arguida.
Nessa medida, e relativamente às ordens dadas para a violação de mulheres tutsi, Pauline Nyaramasuhuko foi condenada apenas por crimes contra a humanidade e crimes de guerra por atentado contra a dignidade pessoal.
Neste processo – que o tribunal considerou “complexo e prolongado” - foram ouvidas 189 testemunhas e analisadas cerca de 13.000 páginas de documentos.
Esse arrastamento do processo não impediu, no entanto, o ICTR de voltar a fazer história: depois de ter sido o primeiro tribunal penal internacional a efectuar um julgamento pela prática de um crime de genocídio (caso Prosecutor vs. Akayesu) ele tornou-se no primeiro tribunal a condenar uma mulher por esse crime.


Miguel Salgueiro Meira

Publicado no "Boletim da Ordem dos Advogados", nº 79/80, Junho/Julho de 2011, pag. 46.

TROIKA, REFORMAS E PRECIPITAÇÃO.

quinta-feira, 9 de junho de 2011



A crise económica e financeira global, aliada às políticas erradas e conjunturais de sucessivos governos, deixaram o nosso país na dependência da ajuda financeira internacional, sujeitos às exigências dos mutuantes.
A redução da despesa pública e demais restrições financeiras impostas ao Estado Português como condição para a concessão daquela ajuda financeira vão ter graves consequências económicas e sociais, e antevêem-se anos difíceis para as famílias portuguesas.
Contudo, e como diz o ditado, “Há males que vem por bem” e a chegada da troika poderá ser uma boa oportunidade para implementar reformas estruturais que o nosso país há muito necessita mas que as forças políticas têm sucessivamente adiado, no habitual tacticismo eleitoralista de disputa pelo poder.
O nosso Estado é, em muitos aspectos, um estado obsoleto, com uma estrutura administrativa e judicial ultrapassada, incapaz de dar resposta rápida e eficaz às exigências da vida moderna e de tornar Portugal um país competitivo.
As verdadeiras reformas que o nosso país necessita para se modernizar afectarão necessariamente o modus vivendi da população portuguesa, há décadas sedimentado e interiorizado, e dificilmente serão implementadas sem que haja resistência e contestação social. Esse é, de resto, um dos motivos pelos quais nenhum dos partidos políticos que até hoje ocuparam a cadeira do poder teve a coragem de efectuar as reformas necessárias. Um bom exemplo disso mesmo, foi a recente oposição manifestada pelo PS e pelo PSD a uma reforma do mapa autárquico, com a necessária redução do número de autarquias locais existentes. O medo de perderem poder político, faz com que os partidos abdiquem das reformas que o País precisa.
Por isso mesmo, a exigência de reformas por parte da troika poderá ser uma oportunidade de ouro para reformarmos e modernizarmos o nosso país, que não deverá ser desperdiçada.
No entanto, aquilo que aparentemente parece ser uma vantagem poderá, a final, revelar-se uma tragédia.
Pior do que não fazer reformas é fazer reformas erradas e irreflectidas.
Reformar implica conhecer a realidade existente que se pretende alterar, equacionar os seus efeitos e o modo de reacção da população a essas reformas, para que o resultado final seja o pretendido e não inesperado.
É, por isso, fundamental que as reformas sejam pensadas e ponderadas e que nada seja decidido em cima do joelho e de formar precipitada, sob pena de se tornar “pior a emenda que o soneto”.
Essa é, sem dúvida alguma, uma das facetas mais preocupantes que as imposições da troika nos trazem.
Se é certo que é necessário implementar urgentemente medidas que revertam o caos financeiro e económico em que fomos lançados, não é menos certo que as reformas da organização administrativa, económica e judicial implicam uma reflexão séria que pondere as causas dos problemas existentes, os objectivos que se pretendem alcançar e os meios adequados para os atingir.
E se é verdade que já nos comprometemos a atingir determinados objectivos no memorando assinado com a troika, também é certo que há sempre mais do que uma maneira de se atingirem objectivos.
As verdadeiras reformas que necessitamos demorarão décadas a ser implementadas e a dar frutos.
Não poderão ser reformas precipitadas, feitas à pressão e sem qualquer ponderação, traçadas por quem não conhece a realidade nacional.
É da realização dessas reformas estruturais, e não do dinheiro que nos vai ser emprestado, que dependerá o sucesso futuro do nosso País.
Se não aproveitarmos essa oportunidade limitar-nos-emos a decalcar o exemplo da Grécia.
Não valerá a pena sacrificar mais uma vez o nosso povo para que tudo permaneça na mesma.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado parcialmente na edição de 12 de Junho de 2011 do jornal "PÚBLICO", pag. 34.

OBJECTIVOS

quarta-feira, 1 de junho de 2011


(A CRISE MUNDIAL E A ERRADICAÇÃO DA POBREZA)

Na transição do século XX para o século XXI, as Nações Unidas estabeleceram um conjunto de 8 objectivos a atingir até ao ano de 2015, com vista a libertar todo o ser humano de condições de vida desumanas e de pobreza extrema.
O primeiro dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) - assim ficaram conhecidos - foi o de “Erradicar a pobreza extrema e a fome” .
Com vista à consecução desse objectivo particular, foram estabelecidas 3 metas: 1ª – Reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a percentagem de pessoas cujo rendimento é inferior a um dólar por dia; 2ª – Alcançar o pleno emprego e assegurar que todas as pessoas (incluindo mulheres e jovens) consigam encontrar um trabalho digno e produtivo; 3ª – Reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a percentagem de pessoas que sofrem de fome.
Não obstante se terem alcançado alguns progressos e as Nações Unidas continuarem a anunciar que o Mundo está no bom caminho para alcançar o objectivo de erradicação da pobreza extrema e da fome, a verdade é que a crise económica global iniciada em 2008-2009 criou dificuldades acrescidas a esse ensejo.
Inicialmente, as taxas de pobreza nos países em desenvolvimento cairam de 46%, em 1990, para 27%, em 2005. O número de pessoas a viverem com menos de 1,25 dólares por dia desceu, entre 1990 e 2005, de 1,8 biliões para 1,4 biliões. E a proporção de crianças sub-nutridas com idade inferior a 5 anos foi reduzida de uma em cada três (em 1990) para uma em cada quatro.
No entanto, a grave crise económica mundial que se iniciou em 2008-2009, trouxe um abrandamento daqueles progressos económicos, fazendo perigar o alcance até 2015 das metas estabelecidas para a erradicação da pobreza extrema e da fome.
Com a deterioração das condições de trabalho resultantes da crise económica global, houve uma queda no emprego e um número crescente de desempregados viu-se forçado a recorrer a empregos vulneráveis e precários, tendo aumentado exponencialmente o número de trabalhadores e respectivas famílias a viver na pobreza extrema.
Por outro lado, em consequência da crise alimentar e financeira então verificada, o flagelo da fome atingiu valores máximos em 2009.
Por todo o Mundo houve uma estagnação dos progressos para acabar com a fome ameaçando o cumprimento do objectivo da sua erradicação em 2015.
Mas isso não fez com que as Nações baixassem os braços e desistissem de alcançar os objectiivos a que se propuzeram para o novo Milénio.
Entre 20 e 22 de Setembro de 2010, decorreu em Nova York a Cimeira da ONU onde foram reavaliados os progressos efectuados no alcance dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio e onde foram traçadas novas estratégias para o seu alcance até 2015, de modo a reverter o impacto negativo da crise económica.
Também em Portugal a crise económica mundial pôs a nu as fragilidades estruturais do país em diversos sectores que se mostraram não estar preparados para receber o impacto daquela, tendo acarretado consequências gravosas para as condições sócio-economicas dos portugueses.
A situação de descalabro financeiro do País está a demandar (e demandará) dos governantes medidas de contenção orçamental e diminuição da despesa pública, que poderão por em causa a manutenção de um conjunto de infra-estruturas e serviços públicos de apoio social que se têm vindo a revelar profundamente essenciais para combater os focos de pobreza extrema que se verificam no País.
Em contrapartida, a recessão económica e o aumento do desemprego aumentarão o número de cidadãos com necessidades de recorrer ao apoio social do estado para obviar à sua situação de carência.
Assim, a disponibilidade financeira do Estado para subsidiar o combate à pobreza extrema diminuirá na medida inversamente proporcional ao aumento das necessidades dessa mesma ajuda.
Tempos difíceis se avizinham.
Face à provável incapacidade do Estado para garantir resposta a todas as situações dramáticas de pobreza que se vislumbram no horizonte, é imperioso que a sociedade civil se mobilize para ajudar nesse combate, procurando arranjar mecanismos e organismos alternativos que dêem resposta às necessidades crescentes desse auxílio social onde o Estado não chegar.
De outro modo, a dignidade da pessoa humana - que o artº. 1º da nossa Constituição proclama ser a base da República Portuguesa, correrá o risco de não passar de letra morta.
A Republica também somos nós.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado na edição nº 162/Maio da revista "CAIS"

RATKO MLADIC: o símbolo vivo da barbárie e do terror

quinta-feira, 26 de maio de 2011




A detenção de Ratko Mladic, e a sua submissão a julgamento pelos crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, pelos quais se encontra acusado desde Julho de 1995, não significará apenas mais um triunfo para a justiça penal internacional.
Ela permitirá às suas vítimas alcançar a paz e reconciliação que a memória desses crimes e a ausência de punição dos seus responsáveis lhes negou.
Falar em Ratko Mladic não é falar apenas num homem ou num comandante militar. Falar em Ratko Mladic é falar na barbárie e terror mais grotesco vivido durante a guerra na Bósnia.
Nomeado Comandante do Exército Sérvio da Bósnia em 12 de Maio de 1996, Ratko Mladic envolveu-se juntamente com Radovan Karadzic – única pessoa a quem se encontrava subordinado - num plano para eliminar ou remover definitivamente os Muçulmanos Bósnios e outros habitantes não-Sérvios dos territórios da Bósnia-Herzegovina reclamados pelos Sérvios.
A partir de Maio de 1992, as forças militares sérvias, sob o comando de Ratko Mladic, iniciaram a ocupação de vários territórios na Bósnia-Herzegovina. Nos diversos municípios ocupados, as forças militares sérvias participaram em campanhas de perseguição às populações não-sérvias. Milhares de indivíduos foram deportados ou transferidos à força para fora desses municípios. Muitos foram assassinados e muitos outros foram mantidos em centros de detenção onde eram torturados e mantidos em condições desumanas.
À parte desses actos de barbárie física, o exército sérvio, sob o comando de Ratko Mladic, destruiu e apropriou-se de casas, estabelecimentos comerciais, locais de culto e outros bens propriedade dos indivíduos não-Sérvios.
Muitos dos Muçulmanos Bósnios fugiram, então, para os territórios da Bósnia-Herzegovina controlados pelo governo, nomeadamente Sebrenica e Zepa.
As forças militares Sérvias iniciaram, então, uma operação para capturar a localidade de Sebrenica e expulsar a população Muçulmana Bósnia que aí se havia refugiado.
Entre 12 e 20 de Julho de 1995, milhares de Muçulmanos Bósnios foram capturados pelas forças militares sob o controlo de Ratko Mladic. Cerca de 8 000 Muçulmanos Bósnios capturados em Sebrenica foram sumariamente executados entre 13 e 19 de Julho de 1995, tendo sido posteriormente enterrados em valas comuns.
Ratko Mladic sabia que todos estes crimes estavam a ser cometidos no terreno pelas forças militares sob o seu comando, mas nada fez para prevenir ou punir esses actos.
Passaram-se já quase 16 anos sobre esses crimes.
Milhares de pessoas permanecem ainda marcadas, física e psicologicamente, pelos horrores vivenciados na guerra da Bósnia.
Não eliminando essas marcas, a detenção e julgamento de Ratko Mladic e Radovan Karadzic terão, no entanto, a virtualidade de por fim a um sentimento de impunidade que grassava no coração desses milhares de pessoas.
A esperança na Justiça nunca deve morrer.

Miguel Salgueiro Meira


Publicada parcialmente na edição de 3 de Junho de 2011 do semanário "EXPRESSO", in "Carta da semana", pag. 44

A CABEÇA DE KADHAFI

sexta-feira, 15 de abril de 2011



A declaração conjunta dos chefes de Estado dos E.U.A, Reino Unido e França tem uma leitura bem clara: não está a correr bem a guerra na Líbia.
Os rebeldes estão longe de ter a representatividade e apoio que se pensava e nem com o apoio aéreo dos países ocidentais têm sido capazes de derrotar o líder Líbio.
As forças leais a Kadhafi – pelos vistos mais leais do que se esperava – tem derrotado facilmente os rebeldes sempre que cessam os ataques aéreos: é ver as inversões de marcha das Pick-Ups em debandada geral sempre que terminam os ataques aéreos e o exército de Kadhafi recupera fôlego.
Os governos dos E.U.A, Reino Unido e França, em vez de tirarem as ilações devidas, continuam a pretender derrubar Kadhafi a todo o custo, nem que tenham que violar a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (nada de novo, infelizmente).
Até para os mais cépticos estará agora claro que o objectivo inicial sempre foi derrubar/matar Kadhafi.
Se é essa a solução que a maioria dos Libios quer, já não é assim tão certo.
Num país tribal em que a união era assegurada pelo ditador Kadhafi, o Ocidente deveria preocupar-se em assegurar uma solução pacífica, com a realização de eleições sob a supervisão da comunidade internacional, de modo a não criar mais um foco de instabilidade nos países árabes.
Mas isso tinha um risco para o Ocidente: Kadhafi poderia vir a ser eleito.
Isso não interessa, seria um vexame e um revés nos interesses dos E.U.A, Reino Unido e França. A cabeça de Kadhadi é a solução.
O que esses países deveriam fazer era tirar ilações da guerra no Afeganistão e perceber que pouco adianta para a estabilidade política de um estado árabe ter um governo fantoche apoiado pelo Ocidente sem qualquer apoio popular.
O que se vai criar na Libia, à força, é mais um estado instável.
A ver vamos.

Miguel Salgueiro Meira

METENDO A CIDADANIA NA GAVETA

segunda-feira, 11 de abril de 2011




Para milhares de portugueses que nas últimas presidenciais votaram em Fernando Nobre, a notícia de que ele irá encabeçar a lista de deputados do PSD, por Lisboa, às próximas eleições legislativas foi como um punhal afiado cravado nas costas.
Acreditando no candidato que dizia ser contra o actual sistema partidário, os seus eleitores tiveram a ilusão de estarem a confiar o voto a alguém que, de facto, se demarcava daqueles partidos e que combatia a lógica de tacticismo e oportunismo que neles grassa.
A alusão constante de Nobre à cidadania - que a sua candidatura pretendia encarnar em detrimento da política partidária - granjearam-lhe a simpatia de milhares de pessoas.
Só por isso Fernando Nobre teve os votos que teve, dando um sinal claro de descontentamento aos partidos.
Ainda há pouco tempo Nobre dizia “Em Maio (…) tornarei pública a decisão que, repito, já tomei. Ela exclui em definitivo (…) a aceitação de qualquer cargo de nomeação político-partidária”.
Quem nele votou não estava, por isso, arrependido.
Essa ausência de arrependimento terminou no passado Domingo, como se pode ler nas centenas de mensagens de descontentamento deixadas no Facebook de Fernando Nobre.
Em poucos meses ele deu o dito por não dito – conduta típica da política partidária.
Nobre trocou a cidadania independente pela independência num partido.
A opção de Nobre é um duro golpe naqueles que acreditam nas possibilidades da cidadania em democracia.
O cúmulo é que, em caso de vitória, o PSD vai-lhe oferecer o lugar de Presidente da Assembleia da República – precisamente a figura constitucional que representa o porta-voz dos representantes dos cidadãos.
Quem assim tratou a cidadania independente não merece mais nada a não ser desprezo.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado integralmente na edição de 12 de Abril de 2011 do jornal "Publico", pag.34.
Publicado parcialmente na edição de 12 de Abril de 2011 do jornal "Diário de Notícias", pag. 9.

OS GARIMPEIROS DA DESGRAÇA ALHEIA

terça-feira, 29 de março de 2011




À mesma velocidade que nascem os cogumelos na floresta, assim tem proliferado as lojas de compra de ouro usado por todo o País.
Facto revelador das dificuldades económicas e financeiras que afectam as famílias portuguesas, ele não deixa de evidenciar que, mesmo em tempo de crise, houve sempre quem enriquecesse à custa da desgraça alheia.
Mesmo na mais devastadora das guerras, houve sempre quem enriquecesse, fosse com a venda de armamento ou fardamento militar, fosse com o ouro NAZI arrecadado aos judeus – como recentemente deu conta o relatório da Comissão Bergier.
E se de um negócio lícito se trata, ele não deixa de ter aparências de um verdadeiro negócio usurário.
No “boom” de crescimento económico da década de 90, as famílias portuguesas foram aliciadas pela banca a contrair créditos para os mais diversos fins.
Do necessário crédito à habitação, passando pelo crédito automóvel até ao crédito para férias(!), os portugueses endividaram-se para fins necessários ou perfeitamente fúteis.
Slogans como “Faça crédito hoje e comece a pagar daqui a dois anos” ou “Quanto mais comprar mais ganha” destronaram o velhinho e previdente “No poupar é que está o ganho”.
Mas como diz o ditado “Não há mal que sempre dure e bem que nunca acabe”.
Estava bom de ver que a espiral consumista de gastar acima das possibilidades não ia dar bom resultado.
A falta de formação de grande parte dos portugueses e o sucessivo bombardear de facilidades no recurso ao crédito não os deixou ver que é impossível subsistir gastando mais do que aquilo que se ganha.
A crise económica bateu à porta e a corda começou a apertar à volta das gargantas dos portugueses.
Grande parte deles tinha o seu salário mensal contado para fazer face a toda uma panóplia de amortizaçoes da mais variada espécie de créditos.
Com o crescente aumento do preço dos combustíveis e consequente subida do preço dos produtos, bem como com a subida da taxa Euribor, os portugueses rapidamente viram aumentadas as suas despesas fixas.
No entanto, os seus salários não aumentaram para acompanhar o aumento da despesa.
Isto fez com que, ao lado das classes sociais mais desfavorecidas, surgissem os chamados “novos pobres”: aqueles que, possuindo um salário confortável, contrairam tantos empréstimos e obrigações financeiras que lhes consumiram a totalidade do seu rendimento de trabalho, deixando-os numa situação económico-financeira muitas vezes pior do que os “velhos” pobres.
À desgraça do “aperto” económico, somou-se a vergonha que a perda do pseudo “status” adquirido lhes poderia trazer.
Agora nada mais lhes resta a não ser vender aquilo que podem e tem valor: o precioso metal que ainda sobra lá por casa, reminescência de tempos áureos de “vacas gordas”.
Dramático é que eles se tenham que desfazer precisamente daquele bem que mais valoriza nos mercados: o ouro.
Mas, como vemos, há sempre alguém que “cheira” na desgraça alheia uma oportunidade do negócio.
Sinais dos tempos.
“Vão-se os aneis ficam-se os dedos”.

Miguel Salgueiro Meira

Revoltas árabes: democracia ou nova tirania?

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011



As revoltas populares a que assistimos nos países árabes do Norte de África dão-nos conta que chegaram ao fim do “prazo de validade” os tirocínios de velhos ditadores que subjugaram os seus povos durante décadas com mão de ferro.
A ânsia por uma mudança é bem patente nos rostos dos milhares de jovens que encheram praças, manifestando-se contra os regimes políticos despóticos que os governavam.
Se essas revoltas vão representar a chegada da democracia àqueles países é algo já bem distinto e incerto.
Como é incerto aquilo que os revoltosos realmente pretendem: se uma democracia de matriz ocidental - com respeito pelos direitos, liberdades e garantias individuais de homens e mulheres-; se uma “democracia” semelhante a outras que como tal se proclamam noutros países árabes, onde os direitos individuais são violados, ignorados ou, na melhor das hipóteses, menorizados em detrimento dos “direitos da comunidade”.
Parece pouco credível que estas “revoluções” tenham surgido espontânea e sequencialmente nos diversos países de levantamentos populares, organizadas via facebook.
Elas aparentam, antes, ter sido obra de uma cuidada e meticulosa operação, organizada por uma estrutura com ramificações pelos diversos países árabes.
Não é, por isso, clara a influência que a Irmandade Muçulmana possa ter tido na condução destas revoltas nem o papel que irá ter nos novos regimes.
Dúvidas não existem de que a queda dos regimes até agora vigentes vai de encontro aos anseios dos povos árabes.
A dúvida é, antes, saber qual a forma que os novos regimes irão assumir e que tipo de relacionamento pretendem com o ocidente.
Serão regimes democráticos ou novas tiranias?
Adoptarão posturas moderadas ou posturas extremistas?
Condenarão o terrorismo islâmico ou contribuirão para o promover e para albergar impunemente os seus agentes?
Pretendem contribuir para a Paz no Médio Oriente ou pretendem incendiar ainda mais o conflito israelo-palestiniano?
Não é certo também se as revoltas árabes se vão cingir aos seus próprios países ou se, no final, tem reservada uma grande revolta contra o ocidente.
Os extremistas árabes há muito perceberam que não é pela via militar convencional que podem derrotar o ocidente.
Mas a sua actuação concertada pode por em risco as economias ocidentais se utilizarem como arma a privação do principal recurso energético que eles dominam – o petróleo.
Até aqui, regimes como os de Mubarak eram tidos como “moderados” pelo ocidente.
Passadeiras vermelhas foram estendidas um pouco pela Europa – Portugal incluído – para receber Kadhafi.
O interesse do ocidente pelo petróleo e a situação delicada de Israel contribuíram para que a comunidade internacional fosse cautelosamente apertando a mão a tais ditadores.
Agora que esses “moderados” tombaram, aguardemos para ver a quem vamos apertar a mão a seguir.
E aguardemos também para ver se nos “vão apertar a mão” ou se nos “apertarão o pescoço”.

Miguel Salgueiro Meira

Publicado na edição de 2 de Março de 2011 do jornal PUBLICO, pag. 38.

Hoje é dia dos comícios de encerramento de campanha...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011


Hoje é dia dos comícios de encerramento de campanha...
Camionetas cheias de militantes arregimentados nos mais recônditos locais do país vão desembocar em coliseus e outros areópagos decorados com o merchandising colorido de campanha custeada com as subvenções que, a final, saem dos bolsos do contribuinte.
Nesta eleição não se joga apenas a eleição do Presidente da República. É a sobrevivência do defunto Governo que também está em jogo.
Daí que os militantes sejam chamados à colação. Uns com medo de perder o tacho e outros ansiosos por ter um.
Para quem não "milita", resta assistir ao resultado do sufrágio que, ao invés de procurar resolver os problemas do País, vai sobretudo procurar resolver os problemas dessa gente.

Miguel Salgueiro Meira

É ELE, O MESMO.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011



Foi ele quem negociou com Bruxelas a redução da quota pesqueira portuguesa, virando de costas para o mar um povo que dele sempre viveu.
Foi com ele que se encetaram em Bruxelas negociações para a redução das quotas de produção agrícola, dando o golpe fatal no sector primário nacional.
Foi ele que não cuidou de implementar mecanismos eficazes de fiscalização da aplicação dos fundos comunitários, o que tornou fácil a empresários desvia-los para a aquisição de Ferraris, vivendas luxuosas e outras mordomias, em vez de serem aplicados, como deviam, no reforço e modernização do tecido produtivo nacional.
Foi ele que iniciou a política de facilitismo no ensino, mais preocupado em apresentar resultados estatísticos de escolaridade obrigatória à Europa do que em educar efectivamente os portugueses.
E foi ele que, assim actuando, teve o desplante de apelidar de “geração rasca” os frutos de uma escola que ajudou a criar.
Foi com ele que se viraram polícias contra polícias, reprimindo-se com bastões e carros anti-motim uma manifestação pacífica de agentes policiais.
Foi com ele que se reprimiu à bastonada policial os jovens estudantes que pacificamente se manifestavam contra o pagamento de propinas.
Foi com ele que se reprimiu com carga policial os cidadãos que se manifestavam contra as portagens na Ponte 25 de Abril, levando à morte desnecessária de um cidadão.
Foi com ele que se suspendeu o tráfego ferroviário nas Linhas do Sabor e do Dão, nos Ramais do Montijo e Montemor, agudizando as dificuldades da interioridade e periferia.
Foi ele que nunca lidou bem com opiniões diferentes da sua, apelidando de “forças de bloqueio” os que se insurgiam contra as consequências sociais das suas reformas e políticas.
Foi ele que, avesso à crítica, de uma forma arrogante e prepotente, vociferou “deixem-me trabalhar”.
(E por causa disso) Foi ele que abandonou a liderança do PSD em 1995, para evitar ir a votos nas eleições legislativas seguintes e aí sofrer uma pesada humilhação eleitoral.
E foi também ele que perdeu as eleições presidenciais para Jorge Sampaio, porque o povo português, sendo de memória curta, ainda a tinha bem fresca para se lembrar dos 10 anos que esteve sob o seu governo e das consequências sociais das suas políticas.
Foi ele que, com a “ajudinha” de Sócrates, disputou as eleições presidenciais sem ter como adversário um candidato que concentrasse o apoio de toda a esquerda.
Foi ele que, de forma impávida e serena (com toques de “bom aluno”) assistiu à humilhação da Nação Portuguesa pelo Presidente Checo.
Foi ele que permitiu as graves suspeições sobre o actual governo, nada esclarecendo sobre o episódio das escutas que ensombrou o relacionamento entre Belém e S. Bento, numa clara contradição com o clima de “cooperação estratégica” que tanto propalou.
Foi ele que, segundo o jornal “Expresso”, lucrou 147,5 mil euros na transacção de participações da Sociedade Lusa de Negócios (SLN) que controlou o BPN, banco que só não faliu porque foi nacionalizado, tornando públicos os prejuízos de uma entidade que deu lucro a apenas alguns.
E foi ele que, concorrendo ao mais alto cargo da Nação, se julga dispensado de esclarecer ao País tudo o que (mesmo não o sendo) possa parecer duvidoso sobre a sua vida.
E sim.
É ele, o mesmo.
É ele que as sondagens dão como vencedor à primeira volta das próximas eleições à Presidência da República, com 60% dos votos.
Vá lá perceber-se.
Pobre fado o de um povo que não tem ninguém melhor para presidir aos destinos da República.


Miguel Salgueiro Meira

A declaração de um genocídio em curso na Costa do Marfim.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011



Chegam-nos notícias preocupantes sobre o aumento da violência na Costa do Marfim, motivado pela recusa do Presidente Laurent Gbagbo em aceitar o resultado das eleições que deram a vitória ao seu adversário, Alassane Outtara.
Relatos de execuções sumárias, valas comuns, desaparecimentos forçados, violência sexual, e outros crimes perpetuados pelas forças apoiantes de Laurent Gbagbo, bem como de discursos de incitamento ao ódio propagados pelos órgãos de comunicação social por ele controlados, fazem recear o pior naquele país.
Um número crescente de costa-marfinenses refugiou-se já nos países vizinhos, mormente na Libéria, agudizando a situação humanitária naquela região de África.
Na quinta-feira passada, o novo embaixador da Costa do Marfim nas Nações Unidas, Youssouf Bamba (nomeado pelo vencedor das eleições Alassane Outtara), apressou-se a declarar que o seu país está à beira de um genocídio.
A tentativa de qualificar o que se está a passar na Costa do Marfim como genocídio não é inocente.
Por trás dela estão, seguramente, intenções políticas bem definidas.
O reconhecimento técnico-jurídico de um “genocídio” não é uma questão menor.
Um elevado número de mortes não consubstancia, só por si, um genocídio.
Basta lembrar que não é tecnicamente qualificável como “genocídio” o extermínio de 1,4 milhões de cambodjanos no governo dos Khmer Vermelhos.
De acordo com a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, o assassínio de pessoas em larga escala apenas é qualificável como genocídio quando houver da parte de quem comete (directa ou indirectamente) esses crimes a intenção de eliminar, no todo ou em parte, um determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso a que essas pessoas pertençam.
O que permite a qualificação como genocídio é a mens rea do perpetrador, ou seja, a sua intenção de eliminar um determinado grupo. Mas não qualquer grupo: apenas se estivermos perante um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Caso não possa ser qualificado como genocídio, poderá vir a classificar-se como um crime contra a humanidade de extermínio (al. b) do artº. 7º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional) se os assassinatos forem cometidos no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil.
O assassinato de 800 000 ruandeses em 1994 no Ruanda foi, de facto, um genocídio, porquanto era intenção declarada da maioria de etnia hutu instalada no poder eliminar todos os elementos de etnia tutsi.
Traduzindo essa intenção, a média diária de assassinatos no Ruanda, em 1994, foi de 8 000 pessoas por dia.
Morreram quase tantas pessoas num dia de genocídio no Ruanda como militares portugueses nas três frentes de batalha (Angola, Moçambique e Guiné) em todo o período de duração da guerra colonial.
É inquestionável que actos de violência crescente e violações de direitos humanos estão a ocorrer na Costa do Marfim.
Mas será que se pode qualifica-la como genocídio?
As primeiras notícias que vieram a lume sobre a violência na Costa do Marfim davam conta que estavam a ser cometidos actos de violência pelas forças policiais e milícias leais ao derrotado Laurent Gbagbo contra os seus opositores políticos.
Daí não transparecia a intenção de eliminar os membros de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Quando muito, verificar-se-ia a tentativa de eliminar um grupo político, o qual, como se referiu, não é considerado um grupo-alvo para efeitos de qualificação como genocídio.
No entanto, nas últimas semanas houve uma preocupação crescente em fazer chegar aos media factos que, na pratica, podem evidenciar intenções genocidas.
Houve relatos de que estavam a ser marcadas casas de acordo com a pertença tribal dos seus habitantes, para se proceder ao seu assassinato, o que poderá evidenciar a intenção de eliminar um grupo étnico.
O facto de Gbagbo e Outtara pertenceram a grupos religiosos diferentes ajuda também a criar a ideia de, por trás da violência, estariam razões étnico-religiosas.
Foi dada também a notícia de que um soldado das forças das Nações Unidas foi agredido com um Machete, lembrando as imagens trágicas do Ruanda.
Não obstante tudo isso, a verdade é que, segundo as últimas notícias, a violência na Costa do Marfim provocou, desde o acto eleitoral, a morte de 200 pessoas, o que não tem comparação possível com os 8 000 mortos que, em média, morreram por dia no Ruanda.
Porquê qualificar, então, a violência na Costa do Marfim como genocídio?
A verdade é que o reconhecimento da sua existência cria uma obrigação legal internacional de os estados prevenirem e reprimirem os actos de genocídio.
E isso só será assegurado com uma intervenção militar ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o que pressupõe disponibilidade e vontade política dos Estados para o efeito.
Como é sabido, o interesse das principais potências mundiais por África é diminuto.
E, desde que soldados americanos foram massacrados na Somália, os Estados Unidos da América tem-se abstido de intervir naquele continente.
Prova disso foi o trágico exemplo do Ruanda, onde o genocídio tardou em ser reconhecido e a intervenção da comunidade internacional (com a “Operação Turquesa”) só se verificou depois de já ter perecido cerca de um décimo da população daquele país.
Assim, a declaração de iminência de um genocídio, por parte do embaixador Youssouf Bamba, nada mais é do que a tentativa de pressionar a comunidade internacional a intervir no seu país e evitar a violação massiva de direitos humanos, contrariando a tendência daquela em deixar os povos africanos à sua sorte.
Há que perceber o apelo: independentemente da qualificação jurídica a ser atribuída, é urgente que a comunidade internacional ponha fim à violação de direitos humanos na Costa do Marfim.

Miguel Salgueiro Meira