A MULHER COMO SUJEITO ACTIVO DA BARBÁRIE.

sábado, 17 de setembro de 2011

 



A violência e carnificina das guerras andaram sempre associadas ao género masculino dos combatentes, figurando a mulher quase sempre como vítima civil dos conflitos armados, sujeita às piores provações físicas e psicológicas.
Com o passar dos séculos, a mulher foi vendo reconhecidos os seus direitos civis e políticos, e foi naturalmente ocupando lugares nos governos e nas forças armadas das Nações.
Mas nem sempre o papel da mulher nos conflitos armados, como combatente ou governante, conduziu a uma maior humanização da guerra.
A recente condenação pelo Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (ICTR) de Pauline Nyiramasuhuko à pena de prisão perpétua por crimes de genocídio, crime contra a humanidade e crimes de guerra é disso um bom exemplo.
No ano em que se completam 65 anos sobre a data em que a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o genocídio um crime de direito internacional , Pauline Nyiramasuhuko tornou-se a primeira mulher a ser condenada por tal crime.
Entre 6 de Abril de 1994 e 14 de Julho de 1994, num contexto de um conflito armado entre o Exército leal ao Governo e a Frente Rebelde Patriótica (RPF), o Ruanda viveu um genocídio de características grotescas.
A elite governante de etnia hutu lançou-se num plano concertado para a destruição da etnia tutsi, através da eliminação física dos seus membros, tendo em apenas 100 dias sido assassinadas cerca de 800 000 pessoas, numa média de 8 000 pessoas por dia.
As imagens e relatos desse período são aterradoras, com os cidadãos de etnia tutsi a serem violentados, torturados e mortos a golpes de katana, sendo as mulheres tutsi violadas e esventradas antes de serem mortas e as crianças tutsi decepadas em frente aos pais.
Tudo isto se passou com uma força de peacekeeping das Nações Unidas no terreno (UNAMIR) a qual, devido ao mandato limitado que possuía, não pôde intervir para evitar os massacres, num dos episódios mais vergonhosos da história Nações Unidas.
À data do genocídio, Pauline Nyiramasuhuko era ministra no governo interino do Ruanda.
Entre 9 de Abril de 1994 e 14 de Julho de 1994, Pauline Nyiramasuhuko, enquanto Ministra, participou das reuniões do Governo onde foram emitidas directivas e decisões para encorajar a população ruandesa de etnia hutu a atacar e matar os cidadãos de etnia tutsi, nomeadamente destituindo todos aqueles que obstaculizavam o assassinato desses cidadãos, incentivando a população a montar barricadas nas ruas para aí eliminar a população tutsi e tomando outras decisões que permitiram os massacres na comuna de Butare.
Face a todo esse factualismo que resultou provado, o ICTR considerou demonstrado que Pauline Nyaramasuhuko tinha acordado com os demais membros do Governo Interino do Ruanda assassinar os cidadãos de etnia tutsi na Perfeitura de Butare, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, esse grupo étnico. Por isso mesmo, considerou Nyaramasuhuko culpada de conspiração para o cometimento de genocídio .
Para além disso, o ICTR deu como provado que em Maio e Julho de 1994 Nyaramasuhuko ordenou a membros da milicia Interahamwe (uma das principais responsáveis pela execução dos massacres) que assassinassem cidadãos tutsi e violassem as mulheres dessa etnia.
Contudo, nessa parte, o tribunal fez uma crítica contundente à acusação deduzida pelo Procurador: alegando ter provas suficientes para poder considerar que as violações de mulheres tutsis constituíam uma forma de execução do genocídio, o ICTR não pode condenar Nyiramasuhuko pelo crime de genocídio nessa base, uma vez que a acusação que lhe foi notificada não continha uma imputação suficiente de tais factos, pelo que, a ser proferida tal condenação, a mesma atentaria contra as garantias e direitos de defesa da arguida.
Nessa medida, e relativamente às ordens dadas para a violação de mulheres tutsi, Pauline Nyaramasuhuko foi condenada apenas por crimes contra a humanidade e crimes de guerra por atentado contra a dignidade pessoal.
Neste processo – que o tribunal considerou “complexo e prolongado” - foram ouvidas 189 testemunhas e analisadas cerca de 13.000 páginas de documentos.
Esse arrastamento do processo não impediu, no entanto, o ICTR de voltar a fazer história: depois de ter sido o primeiro tribunal penal internacional a efectuar um julgamento pela prática de um crime de genocídio (caso Prosecutor vs. Akayesu) ele tornou-se no primeiro tribunal a condenar uma mulher por esse crime.


Miguel Salgueiro Meira

Publicado no "Boletim da Ordem dos Advogados", nº 79/80, Junho/Julho de 2011, pag. 46.

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