A declaração de um genocídio em curso na Costa do Marfim.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

 



Chegam-nos notícias preocupantes sobre o aumento da violência na Costa do Marfim, motivado pela recusa do Presidente Laurent Gbagbo em aceitar o resultado das eleições que deram a vitória ao seu adversário, Alassane Outtara.
Relatos de execuções sumárias, valas comuns, desaparecimentos forçados, violência sexual, e outros crimes perpetuados pelas forças apoiantes de Laurent Gbagbo, bem como de discursos de incitamento ao ódio propagados pelos órgãos de comunicação social por ele controlados, fazem recear o pior naquele país.
Um número crescente de costa-marfinenses refugiou-se já nos países vizinhos, mormente na Libéria, agudizando a situação humanitária naquela região de África.
Na quinta-feira passada, o novo embaixador da Costa do Marfim nas Nações Unidas, Youssouf Bamba (nomeado pelo vencedor das eleições Alassane Outtara), apressou-se a declarar que o seu país está à beira de um genocídio.
A tentativa de qualificar o que se está a passar na Costa do Marfim como genocídio não é inocente.
Por trás dela estão, seguramente, intenções políticas bem definidas.
O reconhecimento técnico-jurídico de um “genocídio” não é uma questão menor.
Um elevado número de mortes não consubstancia, só por si, um genocídio.
Basta lembrar que não é tecnicamente qualificável como “genocídio” o extermínio de 1,4 milhões de cambodjanos no governo dos Khmer Vermelhos.
De acordo com a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948, o assassínio de pessoas em larga escala apenas é qualificável como genocídio quando houver da parte de quem comete (directa ou indirectamente) esses crimes a intenção de eliminar, no todo ou em parte, um determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso a que essas pessoas pertençam.
O que permite a qualificação como genocídio é a mens rea do perpetrador, ou seja, a sua intenção de eliminar um determinado grupo. Mas não qualquer grupo: apenas se estivermos perante um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Caso não possa ser qualificado como genocídio, poderá vir a classificar-se como um crime contra a humanidade de extermínio (al. b) do artº. 7º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional) se os assassinatos forem cometidos no quadro de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil.
O assassinato de 800 000 ruandeses em 1994 no Ruanda foi, de facto, um genocídio, porquanto era intenção declarada da maioria de etnia hutu instalada no poder eliminar todos os elementos de etnia tutsi.
Traduzindo essa intenção, a média diária de assassinatos no Ruanda, em 1994, foi de 8 000 pessoas por dia.
Morreram quase tantas pessoas num dia de genocídio no Ruanda como militares portugueses nas três frentes de batalha (Angola, Moçambique e Guiné) em todo o período de duração da guerra colonial.
É inquestionável que actos de violência crescente e violações de direitos humanos estão a ocorrer na Costa do Marfim.
Mas será que se pode qualifica-la como genocídio?
As primeiras notícias que vieram a lume sobre a violência na Costa do Marfim davam conta que estavam a ser cometidos actos de violência pelas forças policiais e milícias leais ao derrotado Laurent Gbagbo contra os seus opositores políticos.
Daí não transparecia a intenção de eliminar os membros de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Quando muito, verificar-se-ia a tentativa de eliminar um grupo político, o qual, como se referiu, não é considerado um grupo-alvo para efeitos de qualificação como genocídio.
No entanto, nas últimas semanas houve uma preocupação crescente em fazer chegar aos media factos que, na pratica, podem evidenciar intenções genocidas.
Houve relatos de que estavam a ser marcadas casas de acordo com a pertença tribal dos seus habitantes, para se proceder ao seu assassinato, o que poderá evidenciar a intenção de eliminar um grupo étnico.
O facto de Gbagbo e Outtara pertenceram a grupos religiosos diferentes ajuda também a criar a ideia de, por trás da violência, estariam razões étnico-religiosas.
Foi dada também a notícia de que um soldado das forças das Nações Unidas foi agredido com um Machete, lembrando as imagens trágicas do Ruanda.
Não obstante tudo isso, a verdade é que, segundo as últimas notícias, a violência na Costa do Marfim provocou, desde o acto eleitoral, a morte de 200 pessoas, o que não tem comparação possível com os 8 000 mortos que, em média, morreram por dia no Ruanda.
Porquê qualificar, então, a violência na Costa do Marfim como genocídio?
A verdade é que o reconhecimento da sua existência cria uma obrigação legal internacional de os estados prevenirem e reprimirem os actos de genocídio.
E isso só será assegurado com uma intervenção militar ao abrigo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o que pressupõe disponibilidade e vontade política dos Estados para o efeito.
Como é sabido, o interesse das principais potências mundiais por África é diminuto.
E, desde que soldados americanos foram massacrados na Somália, os Estados Unidos da América tem-se abstido de intervir naquele continente.
Prova disso foi o trágico exemplo do Ruanda, onde o genocídio tardou em ser reconhecido e a intervenção da comunidade internacional (com a “Operação Turquesa”) só se verificou depois de já ter perecido cerca de um décimo da população daquele país.
Assim, a declaração de iminência de um genocídio, por parte do embaixador Youssouf Bamba, nada mais é do que a tentativa de pressionar a comunidade internacional a intervir no seu país e evitar a violação massiva de direitos humanos, contrariando a tendência daquela em deixar os povos africanos à sua sorte.
Há que perceber o apelo: independentemente da qualificação jurídica a ser atribuída, é urgente que a comunidade internacional ponha fim à violação de direitos humanos na Costa do Marfim.

Miguel Salgueiro Meira

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