REINVENTAR O HUMANITARISMO

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

 

No dia 19 de Agosto - data em que se celebrou o Dia Mundial do Humanitarismo - Laurent Vieira de Mello escreveu no “The Washington Post” um artigo intitulado “Os Heróis não reconhecidos dos campos de batalha”, publicado no passado Sábado na edição do jornal Público.

Fazendo um levantamento dos problemas e dos ataques no terreno de que são vítimas os trabalhadores humanitários, Laurent Vieira de Mello foi parco na análise das suas causas.

Remeteu-se a uma análise simplista, apontando o insucesso da missão daqueles trabalhadores à falta de dinheiro e meios a estes disponibilizados, evitando por o dedo na verdadeira ferida.

Sem dúvida que os recursos afectos à acção humanitária são escassos, como salientou o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, em entrevista recente ao Público (P2, edição de 22 de Julho de 2009).

Mas será que o insucesso das missões humanitárias desde os anos 90 do século passado se ficou apenas a dever à falta de meios?

Será que a mudança dramática operada na década de 90, referida por Laurent Vieira de Mello, se ficou apenas a dever a uma redução de meios e ao emergir dos nacionalismos?

Quando em 1859 Henry Dunant atravessou o campo de batalha de Solferino, em Itália, e presenciou o sofrimento de todos os soldados envolvidos no terreno, percebeu que era necessária a criação de uma organização internacional que permitisse melhorar as condições de vida e prestar auxílio às vítimas da guerra. Não lhe interessava de que lado do campo de batalha estava a vítima. O que era determinante era a existência de razões humanitárias que justificassem a intervenção.

Com a criação da Cruz Vermelha Internacional, em 1863, surgiu o Humanitarismo.

Esse Humanitarismo baseava-se em 4 princípios estruturais: Humanidade, Imparcialidade, Independência e Neutralidade.

De acordo com este modelo clássico de Humanitarismo, era o imperativo humanitário que justificava a intervenção.

Essa ajuda humanitária era imparcial, na medida em que era prestada a todos os que dela necessitassem, independentemente do lado do campo de batalha em que estivessem.

As instituições de ajuda humanitária não deveriam estar dependentes dos meios e objectivos dos governos estaduais, o que lhe garantia a independência; e dever-se-iam manter neutrais relativamente às partes envolvidas.

Este modelo clássico perdurou até à década de 90 do século passado.

Nessa altura, começou a operar-se uma mudança de paradigma dos conflitos armados, com o surgimento das chamadas New Wars onde proliferavam as atrocidades humanas, o terror e a carnificina.

Muitas vezes as partes nestes conflitos, interessadas na manutenção dos mesmos (atento o mercado paralelo altamente lucrativo associado à economia clandestina de guerra), criavam e mantinham a instabilidade interna, deslocavam as pessoas no interior dos seus territórios contra a sua vontade e usavam a fome, o terror e a limpeza étnica como arma contra as populações.

Isto fez com que os responsáveis políticos questionassem o dever de neutralidade da intervenção humanitária, considerando-o uma forma de pactuar com as crises humanitárias.

Os governos passaram, então, a patrocinar a criação de novas organizações humanitárias, quebrando o princípio da independência.

Começou a surgir o “Novo Humanitarismo”. Para esta nova corrente, a intervenção humanitária não deveria ser meramente paliativa e de curta duração. Ela deveria orientar-se para o longo prazo, vocacionada para o alcance de objectivos como a manutenção da paz, o desenvolvimento e a reconstrução.

O “Novo Humanitarismo” passou, então, a caracterizar-se por 4 princípios bem distintos dos do modelo clássico: Condicionalidade, Politização, Instrumentalização dos princípios humanitários e Militarização.

A concessão de ajuda humanitária passou a estar sujeita à condição de o governo a quem era concedida respeitar os direitos humanos (deixando de estar apenas dependente da simples existência no terreno de razões humanitárias).

Como as organizações humanitárias eram apoiadas financeiramente pelos governos, elas - perdendo a independência - passaram a prosseguir fins políticos.

Os princípios humanitários deixaram de ser um fim em si mesmo para passarem a ser um meio de atingir outros objectivos de longo-prazo, fossem eles a paz ou um novo desenho do mapa geopolítico.

Por último, o auxílio humanitário passou a ser frequentemente prestado pelos exércitos, numa clara militarização do auxílio humanitário.

Se é certo que o modelo clássico estava a demonstrar-se obsoleto para ultrapassar novas crises humanitárias que surgiam, certo é que o “Novo Humanitarismo” teve efeitos perniciosos.

Frequentemente, governos lançaram mão do argumento da necessidade de intervenção humanitária para, pura e simplesmente, justificarem uma acção armada do seu interesse que, de outro modo, à luz do direito internacional, seria ilícita e censurada pela opinião pública.

Os feridos e demais vítimas dos conflitos armados deixaram de ser a prioridade imediatq da acção humanitária, estando dependentes de os governos entenderem que o governo X ou Y estava ou não a respeitar os direitos humanos.

Em suma, as organizações humanitária passaram a fazer o que não era a sua função: política.

Esta instrumentalização e politização da intervenção da acção humanitária acabou por ter as suas consequências: as instituições humanitárias deixaram de ser vistas como o deveriam ser, para passarem a ser vistas como instrumentos de potências dominantes na tentativa de impor a política destas.

Este facto, aliado à baixa cultura e iletarcia das populações em conflito, facilmente manipuláveis, fez com que fosse fácil mobilizar forças e atacar no terreno as novas organizações humanitárias internacionais vistas agora não como salvadoras mas como inimigas.

As Nações Unidas apanharam por tabela.

Assim se perderam injustificadamente vidas de milhares de vítimas de conflitos e de centenas de trabalhadores humanitários.

Assim perdeu o Mundo um cidadão excepcional como foi Sérgio Vieira de Mello, com todo o seu vasto curriculum de entrega à defesa dos direitos humanos.

É necessário reinventar o humanitarismo para que, com ele, se prossiga a defesa dos fins há tanto tempo visionados por Henry Dunant.


Miguel Salgueiro Meira, in PUBLICO, 3 de Setembro de 2009, pag. 37

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