SÁ CARNEIRO: A MISTIFICAÇÃO DE UM MITO.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

 


Ao contrário dos políticos que são escrutinados no final do seu mandato, a morte prematura de um líder carismático elege o falecido, sem escrutínio, ao estatuto de ícone.
Foi assim com Kennedy e Che Guevara. Assim foi, também, com Sá Carneiro.
Tendo acabado de conquistar uma maioria absoluta para a AD, Sá Carneiro estava em pleno estado de graça quando, a 4 de Dezembro, o avião onde seguia caiu em Camarate.
O projecto que liderava preconizava para o país uma via social-democrata, por oposição a um projecto socialista que, na altura, era ainda um caminho possível.
Eram lutas por projectos e por valores.
A sua morte prematura não lhe deu tempo de governar nem deu tempo aos portugueses de avaliar a sua real capacidade governativa.
Ao contrário de Cavaco Silva, que abandonou a liderança do PSD em 1995 para não sofrer a humilhação da derrota eleitoral para Guterres (há quem procure fazer esquecer isto), a morte de Sá Carneiro poupou-o ao sufrágio dos portugueses, alcandorando-o precocemente a um estatuto de ícone.
Esse seu estatuto não passa, por isso mesmo, de mais um mito da sociedade portuguesa.
Tal como acontece com todos os ícones, as tentativas de aproveitamento político da sua imagem são frequentes, sendo, normalmente, levadas a cabo por quem não tem prestígio e categoria própria para alcançar aquele estatuto.
As sucessivas tentativas de reabrir o processo de Camarate nada mais são do que a tentativa de fazer render um mito.
Há, no entanto, algo em Sá Carneiro e nos políticos da sua geração que deve ser tido como um exemplo para os portugueses, sobretudo para os jovens.
É que, à semelhança de Álvaro Cunhal, Mário Soares ou Freitas do Amaral (políticos da época), Sá Carneiro era um homem que se tinha distinguido na sua vida civil e profissional e que, só depois (e por isso mesmo), foi chamado à política.
Hoje em dia o que se passa é precisamente o inverso: são nomeados para cargos políticos pessoas sem qualquer experiência profissional ou currículo que justifique tal nomeação (às vezes mesmo sem uma licenciatura), aproveitando-se depois do seu currículo político e do leque de relações que tal lhe proporciona para arranjarem um bom emprego.
Os resultados estão à vista de todos.
Valha-nos o exemplo de Sá Carneiro e dos políticos da sua geração, homens que, partilhando valores diferentes, tinham todos valor e lutaram por projectos e ideias.
É esse o exemplo que deve prevalecer de políticos como Sá Carneiro e não qualquer outra mistificação.

Miguel Salgueiro Meira

Publicada parcialmente na edição de 4 de Dezembro de 2010 do semanário "EXPRESSO", in "Carta da semana"

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