UMA JUSTIÇA PARA POBRES E OUTRA PARA RICOS

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

 

No passado mês de Agosto, o Estado português foi novamente condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH).
O sistema de justiça português foi, uma vez mais, o responsável por essa condenação.
Desta vez, não foram os atrasos dos nossos tribunais na realização da justiça que estiveram na génese desta nova condenação (nessa matéria tem já Portugal um vasto currículo no TEDH).
Foi algo que tem tanto de grave como de caricato e nos faz perceber porque é que o cidadão comum vai perdendo a confiança na Justiça.
A história é simples.
Por decisão do Ministério das Obras Públicas, publicada no Diário da República de 11 de Setembro de 1995, um casal viu expropriado um terreno que possuía no Alentejo, com uma superfície total de 128 619 m2, tendo em vista a construção de uma auto-estrada.
No decurso do processo de expropriação, discutiu-se se os benefícios retirados da exploração de uma pedreira existente sobre o terreno deveriam ser tomados em consideração na determinação do respectivo montante indemnizatório. Com esse fundamento, os expropriados reclamaram uma indemnização de € 20 864 292,00.
Por acórdão de 10 de Julho de 2003, o Tribunal da Relação de Évora concluíu que os benefícios decorrentes da exploração da pedreira não deveriam ser tomados em consideração e arbitrou aos expropriados uma indemnização de € 197 236,25.
Em 4 de Fevereiro de 2005, os expropriados foram notificados do montante de custas judiciais que tinham que pagar: € 489 188,42.
Ou seja: o valor de custas judiciais a pagar pelos expropriados era superior ao dobro do montante indemnizatório que tinham direito a receber!
Os expropriados reclamaram dessa conta de custas, alegando a violação dos princípios da justa indemnização e do direito de acesso ao tribunal.
O juiz do tribunal de Évora, rejeitando existirem violações daqueles princípios, reconheceu, contudo, a existência de erros de cálculo na elaboração da conta, ordenando a sua rectificação e redução para o montante de € 309 052,71.
Inconformados, os expropriados recorreram para o Tribunal Constitucional alegando que a interpretação dada às disposições Código das Custas Judiciais, nomeadamente o seu artº. 66, nº 2, era contrária aos princípios da justa indemnização e do direito de acesso à Justiça garantidos pela Constituição.
Em 25 de Setembro de 2007, o Tribunal Constitucional decidiu “Julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto Lei n.º 224 A/96, de 26 de Novembro, interpretada por forma a permitir que as custas devidas pelo expropriado excedam de forma intolerável o montante da indemnização depositada, como flagrantemente ocorre em caso, como o presente, em que esse excesso é superior a € 100 000,00” e ordenou a reformulação da decisão do Tribunal de Évora em conformidade.
Note-se que o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional que o montante de custas a pagar consumisse, na sua totalidade, o montante da indemnização devida pela expropriação.
Dando cumprimento àquele acordão, o Tribunal de Évora decidiu que o montante de custas não devia exceder em mais de € 15 000,00 o montante indemnizatório da expropriação.
Assim, decorridos mais de 12 anos sobre o início do processo expropriativo, aquilo que o sistema de justiça português proporcionou aos cidadãos expropriados foi o seguinte: ficaram sem o terreno, ficaram sem o montante da indemnização devida pela expropriação e ainda tiveram que pagar mais € 15 000,00 de custas!
Foi esta decisão materialmente justa? Obviamente que não.
Por isso mesmo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acaba de condenar o Estado Português a pagar aos expropriados a quantia de € 190 000,00 por danos materiais, pois entendeu haver uma violação do artº. 1º do Protocolo nº 1 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que garante a qualquer pessoa singular ou colectiva o respeito do seu direito de propriedade.
Mas como foi possível a decisão proferida pelos nossos tribunais?
Como é sabido, no que às custas judiciais diz respeito, vigora em Portugal o regime da taxa fixa proporcional ao valor da causa.
Quanto mais alto for o valor da acção, maior o valor das custas a pagar, mesmo que o trabalho efectivamente realizado pelo tribunal seja diminuto.
Isto acarreta o inconveniente – como aconteceu neste caso – de existir uma desproporcionalidade entre o serviço judicial realizado pelos tribunais e o seu custo.
No caso dos cidadãos expropriados, o que foi determinanente para a fixação das custas judiciais não foi o serviço efectivamente prestado pelos tribunais nem o valor da indemnização arbitrada pela expropriação, mas sim o valor do pedido efectuado na acção.
Esta ausência de ligação directa entre o valor das custas e o volume de trabalho prestado pelos tribunais gera situações absurdas. Paga-se mais pelo simples facto de se reclamar mais, mesmo que não se venha a receber o valor reclamado.
Nos últimos anos, os sucessivos governos, procurando mostrar trabalho na área da justiça, têm proclamado êxitos na redução das pendências processuais nos tribunais.
No entanto, isso não foi conseguido através da contratação de novos magistrados que auxiliem a desbloquear os tribunais congestionados.
Essa redução de pendências deve-se, por um lado, a um crescente programa de desjudicialização, que tem retirado da alçada dos tribunais a resolução de diversos tipos de conflito, forçando as partes a deslocarem-se a centros de mediação e outros meios alternativos de resolução de litígios para resolverem os seus problemas, em vez de recorrerem aos tribunais.
Por outro lado, o aumento exponencial das custas judiciais e a redução do número de situações em que é concedido o benefício de apoio judiciário por insuficiência económica, têm sido utilizados pelos governos como um elemento dissuasor do recurso ao tribunal por cidadãos que pretendem lutar pelos seus direitos.
Acresce que a capacidade de reagir nos nossos tribunais contra injustiças como aquela sofrida pelos cidadãos expropriados foi agravada recentemente com a aprovação do novo regime de custas judiciais: se alguma parte quiser agora reclamar da conta de custas judiciais, terá, no acto da reclamação, que depositar 50% do valor calculado.
No caso dos expropriados, se essa norma já estivesse em vigor, implicaria que, para reclamarem da conta de custas do tribunal da comarca de Évora, teriam que depositar (€ 489 188,42 x 50%) € 244 594,21!
Valha-nos o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, na defesa intransigente dos direitos humanos, corrigiu a injustiça cometida pelo sistema de justiça português.
Mas se o expropriado fosse um cidadão que vivesse do salário mínimo nacional, teria ele possibilidades económicas de recorrer a esse tribunal e combater a injustiça?
Há, definitivamente, uma Justiça para pobres e outra Justiça para ricos.

Miguel Salgueiro Meira

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